17 de novembro de 2018

Três cubanos

Era o primeiro ano do "Mais Médicos"… Até então, o único cubano que conhecia pessoalmente era um bongô, ganho de um amigo que viera de lá, e que também trouxera um Tres Cubano. Trata-se de um instrumento, parecido com um violão e que usa três cordas duplas, dispostas como se vê num bandolim ou numa viola caipira, só que em três pares. Existe um com quatro pares, chamado como se supõe de "Cuatro".

O fato é que o tal instrumento só faz sentido se inserido num conjunto típico. Meu amigo se viu com aquele trambolho sem tanta utilidade. Era como se chegasse para tocar com um guitarrón mariachi num grupo de pagode. Ainda assim não quis passá-lo adiante, tendo ficado com ele.

Bem, agora que o trocadilho está explicado, vamos a minha história com três cidadãos cubanos.

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Eu circulava pelas Unidades Básicas de Saúde (as quais chamaremos de UBS) da Zona Sul. Minha função era prover os Médicos de Família de informações acerca dos pacientes psiquiátricos que eles atendiam, a fim de orientá-los quanto às condutas. Era um processo chamado de "Matriciamento" e visava ampliar a expertise dos médicos da saúde básica.

A demanda por atendimento psiquiátrico estava crescendo tanto, que melhor seria treinar os médicos "da ponta" para absorver a maioria dos casos do que abrir vagas com os especialistas na área, aos quais se reservavam os casos de maior complexidade.

Em uma UBS encontrei uma cubana de nome Sula. Uma senhora de quase 60 anos. Já havia estado na Colômbia, Venezuela, Panamá e Bolívia. Um dia me disse em meio a uma discussão de caso: "Os pobres do Brasil têm muita coisa. Você vai nas casas deles e tem muita coisa. Muitos que vocês acham pobres aqui, em Cuba seriam ricos, ou como ricos”.

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Ela disse isso e parou bruscamente de conversar. Arregalou os olhos para mim. Só estávamos os dois na sala onde ela atendia aos pacientes. Eu a fiquei fitando e ela folheava nervosamente o prontuário, até que achei por bem quebrar aquilo: "Doutora, vamos fazer o seguinte, a senhora me conta o que o paciente apresentou e eu lhe sugiro um remédio. Se a senhora não tiver dúvidas sobre caso nenhum, não precisa falar comigo. Pode ser assim?"

Ela se limitou a dizer "sí, sí, sí".

E assim ficamos pelo tempo em que eu passei por esta UBS. Um dia ela me procurou acerca de um caso que precisava de um laudo. Fiz o laudo e o entreguei. Ela, que evitava falar comigo, disse emocionada: "Hoje é o aniversário do Comandante".

"A senhora se refere a Fidel Castro?"

"¡Sí, Doctor! ¡El Comandante que deu su vida para todos os cubanos!"

Eu já tinha uma certa desconfiança mas ali percebi que não havia muito o que ser feito - se é que caberia a mim fazer alguma coisa. Ela estava realmente emocionada, era de verdade.

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Em outra UBS encontrei outra cubana, Eva. Uma negra bonita, por volta dos trinta. Ela usava uma tiara com uma flor vermelha presa a uma das hastes, de maneira que se tinha sempre a impressão que ela trazia a flor por detrás da orelha esquerda.

Ela gostava de estudar. Um dia me pediu bulas de psicotrópicos, queria aprender sobre eles. Tentei presenteá-la com um livro de farmacologia psiquiátrica. Tentei. Ela olhou o livro como se olhasse para uma bomba e arregalou os olhos, meneando a cabeça para os lados e me empurrou de volta, pedindo para que eu guardasse aquilo.

Fiquei petrificado ao imaginar que ela fosse tomar como assédio, mas me tranquilizou: "Obrigado, muito obrigado. Mas não posso aceitar livros. Por isso te pedi bulas. Bulas pode. Livro não pode."

Comecei a enchê-la de bulas, às quais entregava discretamente, sendo que ela recebia num gesto fortuito e guardava no jaleco me lançando um entrerriso.

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Com Elias, numa terceira UBS, o caso foi mais complicado. No primeiro dia me apresentei, ele bruscamente fez um gesto com as mãos como me expulsando da sala, e disse "Gracias, Doctor, não preciso."

Eu não saí da sala, achei que ele estava mal informado sobre meu papel ali. Tentei insistir "Eu não vim consultá-lo. Vim para ajudá-lo com seus pacientes psiquiátricos."

Ele sem tirar os olhos do que estava fazendo, ou fingindo que estava fazendo, repetiu "No, no, gracias, no preciso."

Eu realmente quis entender, pois sabia que sob os cuidados deles havia numerosos casos. E me mantive impassível. Ele ergueu-me os olhos, de um castanho muito claro, um olhar sem raiva mas gélido… dava para sentir o gelo.

Então, disse… "No preciso de ti, não me procures."

E novamente fez o gesto com as mãos. Por razões de ofício fui examinar os prontuários dele. Tinha uma grafia infantil, escrevia pouco e quase sempre num idioma entre o espanhol e talvez o português. Esquivava-se dos casos novos e se limitava a seguir o que já estava escrito. Muitos pacientes reclamavam, e eu também reclamaria se a gerente da UBS não me proibisse de me dirigir de novo a ele.

Com o tempo soube deles: Sula voltara para Cuba e lá ficara a cuidar do marido doente. Eva foi passar o feriado de carnaval numa cidade do interior e não voltou mais à UBS, nem ninguém teve notícias dela. Elias avisou um belo dia para a gerente da UBS que tinha que ir à Brasília, aliás estava partindo naquele momento, mas retornaria ainda naquela semana, porém não retornou nunca mais.

Soubemos que Cuba irá ordenar a volta dos Médicos do Programa ‘Mais Médicos’. Havana teria se irritado com a declaração do presidente eleito de que ofereceria salário integral, asilo e a vinda das famílias que forçosamente ficaram no Caribe.

Ditaduras são assim… não se tem o direito básico de ir e por conta disso está inerente a obrigação de vir quando o governo quiser. Mais sorte teve o Tres do meu amigo, que não será obrigado a voltar, mesmo não tendo se encaixado nas serestas.

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De seu lado, os colegas estavam tocando a vida, cada um de seu jeito, mas dentro do nosso ritmo.

Eu só queria que eles tivessem escolha…

De vez em quando penso em Sula, Eva e no olhar do Elias. Os nomes deles eu mudei. O resto é verdade… Mas em relação a Cuba tem gente que escolhe o que é verdade e o que não é.

E... sim, este texto foi sobre instrumentos.

Brasil, Tabatinga, AM. 28/08/2014. Dr. Gustavo Vargas integrante da equipe Mais Médicos do Governo Federal, que atende na comunidade indígena de Belém do Solimões. A comunidade possui um polo de atendimento médico e lá trabalha dois médicos cubanos que vieram pelo programa. - Crédito:HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:182797


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