26 de outubro de 2018

Eles, os oftalmologistas

Sim, os invejo! Os únicos colegas de outra especialidade que contam com minha mais recôndita, inconfessável e devastadora inveja. Já explico…

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Antes, me deixem declinar as outras categorias dos invejados - e são meio que muitos, confesso. Não tenho vergonha de sentir inveja, até porque a prática deste Pecado Capital não é das minhas preferidas. A Gula e a Preguiça ganham de lavada.

Mas voltemos. Tenho inveja dos jogadores de futebol. Mais precisamente daqueles que sabem fazer embaixadinha - que na minha terra se chamava "balãozinho" (não é um nome fofo?).

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Não precisa ser rico, jogar Copa do Mundo, pode ser zagueiro do lanterna da quarta divisão, mas se souber fazer embaixadinhas, pode ter certeza que contará com minha inveja… ainda mais se fizer com aquela cara meio blasé, nem aí, como se estivesse coçando a cabeça.

E que não experimente fazer na minha frente, porque vou torcer para a bola cair. Não invejo os malabaristas, aqueles que entram no intervalo para se exibirem com o controle da bola. Pode ser que eu inveje mesmo quem sabe jogar com a bola, sendo a embaixadinha a cereja do bolo que faria transbordar meu ressentimento.

Invejo quem sabe logaritmo. Muito, de morte. Se eu soubesse fazer vudu eu faria em quem consegue entender aquilo. Não adianta me explicar. Eu não sei, não quero saber e tenho inveja de quem sabe. Disse isso para um amigo uns tempos atrás. Ele me confortou: "é difícil mesmo... mas os de base dez você sabe né?"

Aí a conversa azedou…

- Os de de base o quê, cáspita?

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Há invejas que guardo na alma com alguma tranquilidade de que de lá nunca sairão. Por exemplo, eu tenho inveja de quem leu "Os Lusíadas" inteiro. Só não sei se existe gente assim.

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De outra face, não sinto invejas óbvias, por exemplo, inveja dos Magros. Os magros comem por obrigação. Assim, como quem escova os dentes. Alguém que come por obrigação, e até por isso às vezes se esquece de almoçar, é alguém chamuscado pelo dedo da Divina Providência. Pra quê invejar alguém assim? "Ah, mas tem aqueles que são magros de ruins!". Tem. Aqueles que comem um boi em cada uma das refeições do dia, portanto três bois por dia, e se mantém esbeltos. Eu não os invejo porque antes de serem magros, eles são ruins, e gente ruim vai – eu sei que vai – queimar no colo do capeta, bem queimadinho.

Na faculdade eu decidi por seguir a Psiquiatria por não me imaginar fazendo medicin... perdão, por não me imaginar fazendo outra especialidade. Não há aqui nenhum rancor com meus colegas Oftalmologistas. Pelo contrário, conheci muitos deles brilhantes, seja na minha turma, sejam calouros com quem tomei convivência, sejam colegas de Centro Acadêmico. Só há inveja mesmo. Vamos lá.

É vezeiro um parente de alguém que será pela primeira vez atendido entrar antes na sala e rogar suplicante: "Doutor, meu pai não sabe que veio passar no psiquiatra... como vamos fazer?"

Um consultório de um oftalmo não se parece com mais nada além de um consultório de um oftalmo, com aquela maquinaria toda. Outra coisa são os remédios. Quantas vezes familiares desesperados pedem um remédio que possa ser diluído no suco, a gente até entende. Mas vai diluir uma lente de contato que seja no suco... Isso quando não aparece gente que nos procura para curar a dependência química e pergunta de bate-pronto após eu aviar a receita: "Mas esse remédio vicia?"

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Ou então quando eu digo que o comprimido deve ser tomado pela manhã e a pergunta é "mas não vai me deixar dopado? Eu vou ficar que nem um zumbi?" Ninguém pergunta, "esses óculos vão me deixar cego?"

E quando nos tomam como rematados estultos? Perdi a conta de quantas vezes ouvi de familiares me advertindo quanto ao parente psicótico "cuidado com o que fala, ele é muito inteligente!" Já imaginaram um oftalmologista ouvir isso: "Olha Doutor, ele vai te convencer que esse embaçamento na vista é a entrada de um portal intergalático".

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Sem contar com aquele tipo que leva umas duas horas para ser convencido da necessidade da medicação e que volta um mês depois dizendo que não comprou e perdeu a receita. Algo como "Doutor, eu já estou trombando em tudo que se mexe, acho que vou ficar mais um mês fora de esquadro, depois ponho os óculos beleza?"

Só reforçando, eu nunca quis ser Oftalmologista… nunca nem tentei ser. E só me ocorreu contar tudo isso hoje porque vou ter que me submeter a lentes. Fui ver uns óculos hoje. Levei a receita do Oftalmologista e a vendedora se empolgou como se me vendesse um item de moda fashion e não um mecanismo para um tratamento das vistas. Mas é que é as duas coisas - e é bom que seja.

Enfim, pedi algo que não me pressionasse as têmporas o tempo todo fazendo com que estivesse numa resaca eterna, além de rogar por uma armação que não me deixasse com cara de emoji.

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Há uma bela canção de Zé Rodrix eternizada por Elis Regina chamada "Casa no campo", onde alguns dos desejos cantados são "Eu quero a esperança de óculos, e meu filho de cuca legal". Talvez a intenção foi desejar uma Esperança de binóculos, vislumbrando um futuro ideal cada vez mais perto. Mas se ficar apenas "de óculos", a Esperança vai ver um futuro mais definido, realista, sendo um sonho realizável.

O que não há dúvida é quanto ao "Filho de cuca legal". Tudo bem que até a Esperança seja passível de correção por uns óculos convenientemente receitado por um bom oftalmologista.

Mas Deus nos livre de nosso filho precisar algum dia de um psiquiatra. Quer saber? Tá certo o poeta…

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