24 de dezembro de 2018

O presente de Natal

Tecnicamente já era dia 25, pois se aproximavam as cinco horas da madrugada. Mas o clima era de 24 ainda, já que nem todos - nem eu - haviam conseguido comer a ceia coletiva da qual todos participaram. E pelo andar do plantão ia ficar para o Natal do ano que vem.

20181224_spasmo

Eu terminava uma internação quando a Enfermeira acorre à porta do consultório:

- Abri um protocolo de dor torácica, não teve jeito. Paciente de 67 anos com dor típica. Vou correr o eletro. Mas será que o senhor já quer ir falando com ele?

O tom da pergunta era quase de desculpas, pois ela sabia que não paramos. Foi o que quis lembrá-la:

- Pode, claro, mas olha... fique em paz, a gente veio para isso. Tá pesado para você também.

Ela abriu um sorriso franco e logo depois trouxe pelo braço um senhor. Nós já sabíamos a idade dele.

- Seu Lúcio ?

Era o que dizia a ficha… Lúcio Alves. Então, comentei…

- Nome de cantor… Lúcio Alves!

- Este 'Alves' é por causa do cantor mesmo. Meu pai era seresteiro e grande fã dele.

- O meu também! E eu sei até umas músicas!

- Eu sei por ouvir quando pequeno e por trabalhar com isso. Eu canto na noite.

- Puxa vida, então eu tenho um artista em minha frente!

- Um artista que está tendo um troço! -  E fez uma careta comprimindo com o punho fechado a região do meio do peito.

- A enfermeira está nos esperando para o eletro, vamos lá?

  Levantamos rapidamente e ela já aprontava a maca. Fez com que ele desabotoasse a camisa, se deitasse e foi colando os adesivos no peito. Então perguntei:

- Quem veio com o senhor?

- Ninguém não. Esperei todo mundo dormir e vim. A ceia foi diferente esse ano…

Achei por bem interromper ali pois podia interferir no resultado do exame. Pousei a mão no ombro dele como que anunciando que ficaríamos em silêncio. Fui vendo o traçado… nada preocupante.

Ela terminou o exame e me deu a folha, e fui para a sala enquanto ele se recompunha. O eletrocardiograma estava absolutamente normal. Logo depois ele adentrou à sala. Pedi para auscultar seu coração. Tudo bem. Sentei-me e finalmente disse:

- Seu Lúcio, não tem nada no coração! Nós vamos ter que entender o que é essa dor. Mas por enquanto eu o convidaria a ficar um pouco mais tranquilo. Sua pressão também está normal.

Ele me olhou intrigado, por vários segundos antes de dizer:

- Mas dói. Dói muito… queima, sabe?

Perguntei se tinha gastrite, se fumava, se bebia - bebia nunca, nem quando cantava de noite - se tomava remédio, "um para a pressão, que faz fazer xixi". Aí a pergunta-chave:

- Passou nervoso na ceia? O senhor disse que foi diferente.

- Eu tenho uma filha de 15 anos. Fui pai tarde, é minha filha única. E ela comunicou na ceia que estava grávida.

E abaixou a cabeça numa expressão de dor.

Na mesma hora lembrei do verso de uma canção que dizia "tanto engorda quanto mata, feito desgosto de filha". Em minha frente eu tinha alguém que havia acabado de receber um petardo no peito no sentido figurado, mas que doía como se fosse real. Há que se ter cuidado para dizer que não se trata de algo letal e não parecer que se está desfazendo daquela dor.

Por alguma razão ele havia sido pai depois dos 50, e aí várias ilações me pululavam na mente. Mas para domá-las e principalmente para seguir com a consulta, continuei:

- Ela namora faz tempo?

- Anunciou tudo junto… Que está namorando e que engravidou.

- O pai da criança tem que idade?

- Moleque também, da idade dela. São colegas do curso de Crisma.

Ouvindo isso, fiz uma careta da qual teria me arrependido se ele não tivesse sorrido de olhos fechados e fazendo um sinal de concordância com a cabeça… O que estaria se passando pelos pensamentos daquele senhor? Um pai bissexto, que certamente colocara seu maior tesouro numa redoma - ou pelo menos tentara, inclusive com uma educação religiosa formal e bem dirigida pelo que dera para notar. Tentei contornar, meio sem saber como…

- Bom... o senhor ainda trabalha.

Ele olhava o chão e já respirava melhor.

- É, eu ainda trabalho. Eu tenho um estudiozinho, alugo para gravações, produzo outras. Cantar na noite mesmo é uma vez, duas por mês. Só para não perder o costume, eu gosto.

Ele foi se ajeitando na cadeira, assumindo uma postura mais ereta. No afã de atenuar a situação, acabei por fazer uma pergunta, que mais soou como uma afirmação desastrada:

- O senhor demorou a ter essa filha!

Ele me olhou sério… cheguei a gelar por dentro.

- Eu viajava muito. Cantava em dupla com minha esposa na época, não dava para pensar em filho. Aí tivemos um acidente de carro e ela faleceu. Fiquei um tempo batendo cabeça até que resolvi ficar mais quieto e montei o estúdio. Depois conheci minha atual esposa e a gente quis ter filho e aí veio minha menininha. Ela tem o nome da minha parceira que faleceu.

Soltei um suspiro e ficamos ambos cabisbaixos. Ele perdera a primeira esposa com quem inclusive dividia a arte e agora perdera a sua menininha, tornada mulher por força das circunstâncias.

Ele então ergueu os olhos para mim:

- Então o senhor me garante que não há nada no coração?

Achei por bem ser enfático…

- Garanto!

Ele manteve o olhar fixo em mim e marejou os olhos.

- Que bom!

Sorri também e ele continuou…

- Eu fui pai com 52. Por opção mesmo… Daí nunca tive pensamento de ser avô. As pessoas estão tendo filhos depois dos trinta, sei lá. Achei que ela fosse ser mãe daqui a uns vinte anos. Aí eu ia estar gagá ou morto mesmo.

Rimos juntos...

- Depois da ceia, que foi horrível, claro que foi, eu já fiquei com essa dorzinha. Vi todo mundo dormir, e o negócio não passava. Aí bateu o medo, o senhor sabe como é, né?

- Sei sim, deve ser horrível, é como ver a morte chegar.

  Ele me fitou meio surpreso e boquiaberto por uns segundos, e arrematou:

- É que não era só morrer não Doutor. Pensei que eu não veria meu neto. Uma coisa que eu nem contava, e de repente aparece e eu que ainda tô inteiro disparei a pensar no que eu podia fazer com ele e foi quando eu vi o violão que foi do meu pai, que tá pendurado na parede.

- O senhor não toca o violão do seu pai?

- Nunca toquei, por respeito. Minha filha não toca nem campainha, ela não gosta disso. Aí eu pensei… quem sabe eu não tiro esse violão daí e dou pro bezerrinho que tá vindo aí para ele aprender a tocar?

Eu lhe sorri.

- Quem sabe vocês não façam uma dupla? Ou pelo menos cantem juntos!

- Cantaremos, Doutor! Cantaremos! Eu posso ir?

- Mas já passou a dor? Talvez eu precise fazer uns exames, mais por conta do protocolo.

Ele ficou me olhando um tempinho, como a me explicar com os olhos que nunca fora homem de seguir protocolos. Eu entendi. Estendi o eletro e o ofereci:

- Olha, seu Lucio, não é nosso costume, mas o senhor aceita esse eletro de presente? Para provar que o senhor  tem um coração bom!

Ele riu e falou se levantando…

- Não precisa, Doutor, eu te agradeço muito... Meu presente, Deus já me deu hoje!

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