24 de outubro de 2016

O monstro de Lego e o DDI da Botswana

lego

O negócio consistia em uma armadura onde um bonequinho se encaixaria, mas era uma armadura que dava umas seis vezes a altura do bonequinho, que por sua vez era pouco menor que um dedo polegar. Deu para entender?

A armadura tinha a forma humanoide, um robozão com cabeça e tudo, e o bonequinho seria inserido na região esternal, no peito da armadura - se peito ela tivesse. Melhor explicando, ele se encaixaria ali onde pende a medalhinha - se medalhinha a armadura usasse.

O bonequinho já vinha praticamente pronto. Bastava encaixar a cabeça e os braços no tronco – pois as pernas já vinham encaixadas – e depois um capacete na cabeça. Já a armadura... bem, a armadura precisaria ser montada em 53 passos, onde pecinhas de milímetros, geralmente quadriláteros dos mais diversos tipos, com encaixes tipo "macho-fêmea" seriam minunciosamente dispostas.

Cada braço da armadura era na verdade uma arma letal. E das costas brotava algo como um resplendor de garras, que encimava a parte superior traseira da estrutura - imagine uma fantasia de carnaval destas pomposas, onde ao invés das penas de pavão que brotam das costas e fazem um halo exuberante atrás do corpo, temos garras dispostas mais ou menos como ferrões de escorpião. Tudo isso numa cor preta, nigérrima e, sinceramente, na foto da caixa dava medo.

Untitled-1

Eis que meu filho de cinco anos se interessou pelo artefato e quis ganhá-lo de presente. A mãe comprou e ele chegou radiante em casa, com a caixa na mão já desembrulhada. Ele me viu sentado à mesa da cozinha e escalou meu colo com a maior empolgação do mundo – ele sente a maior empolgação do mundo por vários assuntos, várias vezes no dia - colocando a caixa na mesa de maneira que nós dois pudéssemos contemplá-la e sem esperar reação de minha parte desferiu a pergunta que eu temia: "Papai, monta comigo?"

Obviamente ele não esperou a reposta e começou a abrir a caixa. Apareceram quatro saquinhos plásticos cheios de pecinhas dentro. Abrimos todos e despejamos as pecinhas no tampo da mesa. Meu terror diante daquilo tudo foi facilmente aplacado pela cara de fascínio do menino. O olhar dele estava dando uma festa. Facilmente ele divisou o folheto de instruções. Avançou sobre ele quase caindo do meu colo, mas depois me estendeu aquela folha de papel com ilustrações demonstrando os 53 passos para a montagem sem nenhum texto. Foi quando trocamos olhares. Vi que o olharzinho dele dizia "você sabe exatamente o que fazer, você é o cara".

E antes de continuarmos, preciso de uma digressão...

Fui um pai bissexto, aos 37 anos. E protelei até o quanto pude exatamente pelo medo de receber aquele olhar. Eu nunca fui de saber exatamente o que fazer, e na maioria das vezes em que achei que soubesse não fiz. Essa falta de prática nestes pormenores me travava o intento da paternidade. Não que me sentisse incapaz de prover. Não, para isso sempre se daria um jeito e na pior das hipóteses haveria a mãe. Mas eu imaginava que receberia em algum momento da incipiente vida do meu filho aquele olhar carregado de expectativa e de reconhecimento aos poderes do primeiro homem-grande que seria digno da admiração daquele homenzinho. E tinha a certeza que me apressaria em dizer algo como "olha, meu jovem, deixa eu te avisar que a coisa não é bem assim..."

Naquele momento, naqueles poucos milésimos que durou aquele olhar, isso tudo passou pelo meu pensamento. Mas sabe-se lá que força me deu que tomei o folheto de instruções na mão e devolvi ao meu menino um olhar que dizia "deixa aqui com o pai, vai dar tudo certo".

Bem, o tal folheto, como já sabemos não trazia texto. Mas eram ilustrações praticamente auto-explicáveis. Praticamente... cada passo da montagem trazia, encimado num quadrinho, as peças e a quantidade de cada uma necessária para a montagem. Logo abaixo vinha a parte do monstro montada. Entenderam? Eram dispostas na parte de cima as pecinhas e embaixo o resultado delas montadas. E entre um e outro, eu que me virasse. Comecei a suar frio já no segundo passo, e uma voz nada complacente me enervava soprando "calma, ainda faltam 51 passos". Para a montagem daquilo era exigido que o montador dispusesse de raciocínio espacial, lógico e tridimensional. Não, eu não disponho de nenhum desses...

Mas não me considero um rematado idiota. Pelo menos na maior parte do tempo. Tenho boa memória, uma excelente memória para dados inúteis. Quanto mais inútil, mais eu guardo na cachola. Certa feita estava conversando entre amigos, nem me recordo o assunto. Mas num dado momento alguém perguntou o DDI da Botswana, um país que fica no sul da África. Eram tempos sem smartphones nem Google (e... pasmem ... sobrevivíamos). Alguém achou uma agenda de papel (ainda existem?) e nela constava uma lista com países e seus DDI´s. Descobrimos que o da Botswana era 267. Isso tem mais de vinte anos, volta e meia nos reencontramos e eu os desafio a lembrar o famigerado DDI. Ninguém lembra. Só eu.

Percebam que esta é uma inteligência - se é que é uma "inteligência" muito específica. Millôr Fernandes dizia que o jogo de xadrez desenvolvia a inteligência para... jogar xadrez. De tal sorte que minha prodigiosa memória serviria para me fazer um bom jogador de "Stop". Mas no Stop (que na minha terra se chama "Adedonha"), a memória só é um dos atributos. Há que se ter rapidez de raciocínio. E o meu raciocínio, eu sinto dizer, é lento. Quando jogo Stop então, o pensamento pisa no freio. Porém, numa conversa solta é divertido saber tanta coisa inútil. Tenho a impressão de que já foi mais divertido, mas paciência.

Daí que na escola sempre tive a matemática e as ciências exatas como inimigas. Drummond dizia que as escolas enchem as crianças de matemática sem fazê-lo através da poesia da matemática. Não sei, diria ao Poeta. No meu caso cansei de ver professores e colegas de classe deslumbrados com aqueles números na lousa. Nessas horas, além de me sentir burro eu ficava com remorso de não partilhar daquela alegria toda.

O fato é que mesmo assim eu terminei a escola, a faculdade, a pós-graduação e até consegui ser pai. E é com muito orgulho que vos declaro que, voilà, terminei de montar o monstro de Lego, quase três horas depois da montagem iniciada, com meu filho já dormindo há tempos. Deixei-o de pé sobre a mesa, e fui dormir feliz. Antes dei uma olhadinha a mais no outrora amontoado de pecinhas que agora era alguma coisa em cima da mesa da cozinha. Disse baixinho "Parla!"

No outro dia, meu filho veio me acordar. Queria descer para ver o monstro. Descemos, e vi que ele já desfrutava de sua primeira maior empolgação do mundo daquele dia. Sentamos juntos, cada um numa cadeira. Eu peguei o monstro antes do menino. Olhei incrédulo. Eu tinha mesmo feito aquilo? Essa dúvida me consumiu muito tempo. Impaciente, meu filho puxou o negócio da minha mão e aconteceu o inevitável: o boneco escapou de nós e se espatifou no chão. Corremos a tentar juntar os pedaços que se espalhavam pelo chão, ao mesmo tempo em que dissuadíamos com altos berros nossa cachorrinha de tentar comer algumas pecinhas.

Colocamos o monstro esquartejado em cima da mesa. Já experimentei algumas derrotas e aquela certamente iria para a prateleira das maiores. Mas meu menino não se deteve. Em contraste com minha catatonia, prontamente foi remontando o brinquedo - detalhe - sem se guiar pelo folheto. Fiquei contemplando sua agilidade e ele me olhou sorrindo. E foi então que após o sentimento de derrota, fui tomado por uma vitória irresistível: a de ter o privilégio de poder olhar para o filho de cinco anos e dizer com os olhos, "você sabe exatamente o que fazer. Você é o cara!"

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