2 de novembro de 2018

A Esperança dos Outros

Há várias tragédias na história de Pip, principal personagem de "Grandes Esperanças", suculento romance de Charles Dickens.

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O livro conta a história de um menino órfão, o tal Pip, que passa por uma infância de privações imensas até  que o destino lhe sorri: ele ganha algo como uma polpuda herança, ou um patrocínio generoso exatamente para colocar em prática seus sonhos.

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Neste momento se dá a principal tragédia em sua existência, que é a de ver concretizadas as suas grandes esperanças. O menino já feito homem descobre que ter muito dinheiro pode ser também fonte de problemas, principalmente se houver na pessoa o pendão para criá-los - e é certo que todas as pessoas possuam este talento em alguma medida.

O negócio começa a degringolar quando ele renega o passado pobre e daí vai metendo os pés pelas mãos até ser levado pelas situações a fazer um balanço da vida, sentido último do livro que é narrado em primeira pessoa. O que esperar quando tudo dá certo?

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Agora, uma outra história… Um coronel aposentado aguarda a aprovação do pagamento de sua aposentadoria enfurnado em uma cidade ribeirinha qualquer no interior da Colômbia. Vai toda semana para a beira do rio esperar a canoa do carteiro que sempre traz o olhar desolado por não trazer nenhum envelope para o militar. "Ninguém escreve ao Coronel" de Garcia Márquez fala da esperança desalentada, carcomida, mas que ainda é o que resta, sempre a última coisa que fica no desolador vazio de uma vida.

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Há também, na história, um galo de briga, sempre amarrado a um móvel, que vive os dias a comer, e a comer e a comer, nunca estando pronto para a rinha, de onde o Coronel também espera que sairá algum dinheiro. No final, o Coronel tem uma explosão de raiva diante dos questionamentos da esposa. Raiva, apenas. Sem lucidez. Só desespero.

São ilustrações de dois extremos que se encontram na perda da Esperança. Há os exemplos em que ela se mostra como o único, irremediavelmente único sentido para a existência. Penélope aceitou com serenidade esperar seu marido Ulisses que demoraria dez anos para retornar da Guerra de Tróia. Não, ela não bordava (e desbordava) seu manto num exercício infinito para suportar a espera. É que seu pai exigia que ela se casasse, uma vez que dava Ulisses como morto. Penélope teve que capitular, mas avisou que só se casaria quando terminasse o manto - daí o faz-desmancha. A Esperança nela assumia ares de resignação, com muita firmeza.

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Na peça "Esperando Godot", de Samuel Beckett, dois vagabundos esperam o tal Godot, que nunca aparece. Lá pelas tantas eles se perguntam "por que é que estamos esperando mesmo?" A falta de tudo é tão imensa que um eles cogita se enforcar, não para morrer, mas para ter uma ereção. E fincam sua existência em esperar uma figura, sem forças nem para idealizá-la.

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Bem, o tempo de eleições, assim como o Réveillon é um renovar-se de Esperanças. Pode ser que um seja mais sem-sentido que outro, mas é o que acontece. No fim das contas votar tem mais concretude que pular ondinhas. O mais pernicioso é que nas eleições colocamos nos ombros dos candidatos as resoluções de ano-novo - aquelas que a gente nunca cumpre. Ao final, se no Réveillon a virada da meia-noite representa esperança para todo mundo, nas eleições, uma vez a apuração finda, as esperanças daqueles que "perderam" o voto (eu nunca vou entender essa expressão. Parece que se vota como se aposta num cavalo no Turfe) vão-se com as oferendas.

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A democracia é o exercício de defender o direito de quem pensa diferente. Isso passa por respeitar opiniões diferentes, muitas vezes contrárias. É chato mesmo. Tem hora que não dá para entender por que um cidadão de bem, inteligente, sensível, coerente solta uma frase eivada de equívocos - a menos que ele fosse burro de marré e até ali tenha disfarçado muito bem. É do jogo. Acontece com todo mundo, e todo mundo se vê na posição de quem não entende ou no lugar do burro disfarçado, na maioria das vezes no mesmo momento.

Vimos acima exemplos de como lidar com a Esperança, e com a falta dela. E vemos agora, como em nenhuma outra eleição, que a  maior dificuldade que a democracia traz em seu bojo é exatamente ter que lidar com a Esperança… dos outros.

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E sendo ela um valor tão importante quanto pessoal, talvez um bom começo seja não tentar compreender mas pelo menos deixar a Esperança alheia em paz. Sem fazer pouco, sem fazer troça. Pois é, é difícil. Mas é mais fácil que emagrecer.

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