23 de maio de 2017

Macarronada com sangue

Era um tempo fervente, como ferventes são todos os tempos, a depender de nossa disposição para o fogo. Estávamos em 1990. O muro de Berlim caíra não fazia um ano, era difícil entender o mundo, ainda mais para um bando de adolescentes. Collor acabava de sequestrar o dinheiro da poupança dos brasileiros sob a justificativa de “enxugar a liquidez”. Já discutíamos economia e política animadamente – não nos restava muita alternativa. A Copa do Mundo na Itália teve uma participação vergonhosa da seleção brasileira, então tricampeã e Ayrton Senna seria bicampeão de um jeito meio esquisito em cima de Alain Prost no Japão.

Meses antes, em 89, o Legião Urbana lançava “As Quatro Estações” – mas o que tocava 700 vezes por dia era um troço chamado “It must have been love” de uma dupla sueca de nome Roxette. No começo do ano a TV Manchete emplacava a novela Pantanal, e o Hollywood Rock (patrocinado pela marca de cigarro, sim podia) era aberto por... Gilberto Gil. O filme vencedor do Oscar foi “Conduzindo Miss Daisy” (uma desgraça), mas o que todos víamos e comentávamos era “Sociedade dos Poetas Mortos” (outra desgraça, mas eu fingia que gostava), sem contar o arrasa-quarteirão “Ghost- do outro lado da vida” (sem comentários).

A parte boa é que Ribeirão ainda tinha um monte de cinemas de rua – havia uma ou duas salas no shopping, mas o shopping ficava na saída para Bonfim Paulista (ainda fica), e era tão longe que a gente tinha a impressão de que ficava em Bonfim mesmo.

No colégio surgiu a oportunidade para compor a chapa do Grêmio. Lá fomos nós. Vencemos a eleição e tentávamos antes de mais nada fazer parte do cotidiano dos colegas. Um dos colegas de chapa era um amigo que se dizia trotskista. Eu não sabia o que era um trotskista até conhecê-lo. Aliás foi nessa época que descobri que nasci reacionário – pelo menos era o que diziam pra mim, em tom de troça.

Este amigo (vamos nomeá-lo assim) gostava de me chamar de Duce. Já naquela época quem destoasse do tom esquerdista era um fascista, mas se levava na brincadeira. Só ele chamava tanto que uma vez eu tive que pedir para que o fizesse apenas em particular, porque estava começando a “pegar mal”.

Para piorar, aquele ano marcou o centenário do nascimento de Oswald de Andrade. Tivemos que fazer alguns trabalhos sobre ele, e numa dessas topamos com um livro chamado “Dicionário de Bolso”. Nele havia definições dadas por Oswald a vários conceitos e pessoas, colocados como verbetes. Lá se lia por exemplo que Marx era a “esquina da História”, Ignácio de Loyola era a “má-companhia de Jesus” e Mussolini era “macarronada com sangue”. Claro que meu Amigo alternava o “Duce” com o “Macarronada com sangue” para se dirigir a mim, ainda que respeitando o combinado de me chamar pelo nome diante de mais gente. Eu tinha pouco a contrapor. Ainda não sabia o que eram o Gulags, nem o Holodomor – e seria especialmente ofensivo a ele se o chamasse destes palavrões, porque por extensão o estaria chamando de stalinista.

Mas era tudo muito amistoso, a gente se sentia “mó cabeça” falando daquelas coisas e no final tudo acabava em sorvete no Jô…

Uma sexta-feira, ele me chega no colégio acompanhado um rapaz bem mais velho – que devia ter seus 20 anos, o que o fazia realmente bem mais velho. Ele me foi apresentado como representante local da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, e logo ofereceu uma ficha de filiação à UBES. Por aquela filiação o Grêmio teria direito a participar das discussões e até a indicar delegados para eleição.

Perguntei se teria alguma contrapartida. Ele riu e disse:

- Seu amigo bem que me falou que você era direto!

Devolvi:

- Ele não te disse que eu era fascista?

Juro, o sujeito empalideceu com a forma natural com que eu falei. Foi divertidíssimo.

Ele se recompôs e anunciou a contrapartida:

- Bom, aí vocês se filiando, a gente iria trazer algumas discussões aqui para o colégio.

Meu tom de voz ficou bem mais seco:

- Que discussões?

- Ah... discussões, sobre temas nacionais, regionais...

Eu insisti:

- Do tipo?

- Olha, por exemplo, a privatização da Usiminas…

- Quê que tem? – Retruquei.

- Tá para acontecer né? – Ele emendou.

- Mas o que tem isso a ver com a gente?

Ele riu. Eu fiquei mais sério. Meu Amigo atalhou a conversa:

- Olha, nós estamos saindo agora para tomar uma cerveja, vamos?

Fui enfático…

- Não.

O moço da UBES me estendeu a mão de forma muito simpática, dizendo:

- Pensa bem, tá companheiro?

Eu só disse “Companheiro?” Ao que meu Amigo o puxou e saíram dali a passos mais rápidos.

Passou-se o fim de semana e na segunda-feira meu amigo me achou no pátio:

- Vacilo, em Macarronada? O cara veio aqui, na boa vontade.

Fiquei bravo, de verdade:

- Vacilo foi ele ter vindo. E que mané boa vontade? Ele quer é vender o peixe dele. Já é difícil convencer essa turma aqui a prestar atenção na gente, agora imagina a gente andando com esse comuna? E que porra foi aquela da Usiminas?

- Ah, então você quer o Grêmio alienado?

- Nunca. Mas nossa pauta é outra. Vestibular, escolha de carreira, universidade, cultura. Tem muita coisa para fazer. A UBES não tem nada que entrar aqui.

- Tá bom. Mas eu vou levar para a reunião e a gente vota. Você é o presidente, mas não é o dono do Grêmio.

- Beleza!

Ele estendeu a mão e me tratou friamente até a reunião. Não foi difícil lidar com ele, pois nossa convivência girava em torno do Grêmio. Ele não era um amigo de fé. Na reunião os outros membros da chapa só faltaram querer bater nele. Nem precisei falar muito.

Algumas semanas depois, acho até que um, dois meses depois, ele trouxe o raio da UBES de novo para pauta da reunião. Ante os muxoxos de toda a diretoria ele acalmou a todos. Disse que estava para ser votado no Congresso um projeto que previa a cobrança de mensalidades nas Universidades Federais. E lançou que o Grêmio deveria se posicionar quanto à questão. Concordamos.

Então ele arrematou que a UBES poderia ceder um carro de som e poderíamos fazer uma passeata contra o projeto. Imaginem a acalorada discussão, o berreiro, os perdigotos, os braços agitados, as quase saídas-no-tapa até que decidimos aceitar a ajuda da UBES. Mas, frisamos bem, nos nossos termos. Meu Amigo se comprometeu a marcar um encontro com o pessoal da UBES para acertarmos o “evento” – ao que ele crispou:

- Mas não vai ser um evento, tem dó. Vai ser uma mobilização

- Então tá. Mobilização.  

Na reunião veio o sujeito da Usiminas acompanhado de outro mais velho ainda e que também se dizia estudante secundarista. Camisa social, colete, barba e cabelos longos, bolsa masculina a tiracolo. O cidadão era a cara do Patropi, mas guardei para mim essa impressão.

macarronada2

Começaram a falar, e, Jesus, como falavam. Propuseram o horário, o itinerário, a ordem dos discursos, sempre arrematando com “claro, se vocês concordarem.” Ao final pude ter a chance de falar:

- Olha, eu concordo com tudo isso aí. Mas acertamos em reunião que o even... a mobilização teria que ser segundo nossos termos.

O Patropi perguntou meio ríspido:

- E quais seriam?

- Sem partido aqui dentro. Nem lá fora quando sairmos. Sem bandeira. Nenhuma bandeira. Se tiver bandeira ninguém faz nada. E sem grito de ordem relativo a o que quer que seja que não estiver na pauta da mobilização.

E aí, o Patropi se entregou…

- Então que porra a gente vem fazer aqui?

- Vocês virão ajudar a mobilizar nossos colegas. Nada impede que vocês falem com eles em particular durante a passeata. Mas não no microfone, e sem bandeiras.

O clima não ficou exatamente ótimo, mas eu já esperava que fosse assim…

No dia da mobilização, um trio-elétrico estacionou na frente do colégio. Tocava Zé Geraldo (“tá vendo aquele edifício, moço?”). Eu tinha uma fita cassete na mochila com rock nacional num lado e no outro eu não lembrava o que era. Mandei tirar o Zé Geraldo por razões óbvias e entreguei minha fita.

Era Supertramp do outro lado. Patropi ensaiou me bater – e estes ensaios se repetiriam ao longo daquela manhã:

- Meu!!! Você tira um hino para por essa merda?

- Calma, do outro lado tem Legião e Raul, vou pedir para virar.

E virou-se a fita…

Quando todos estavam na rua, fui o primeiro a falar e discorri burocraticamente sobre o projeto, o número do projeto, o deputado que propôs o projeto, o partido e o estado do deputado que propôs o projeto, em suma, eu estava sendo um chato.

Quando vi que não ia dar liga, passei a palavra para o moço da Usiminas. Anunciei o sujeito como representante da UBES. Ele me lançou um olhar contente, me abraçou e começou…

- Obrigado, Companheiro! Hoje a história está nas nossas mãos! Aê galeeera!! Vocês querem pagar faculdade?

Eu temi que ninguém respondesse, mas qual... foi um berro em uníssono “Nããão!!”

Ele se inflamou:

- Vo-cês que-rem pa-gar fa-cul-da-de?? Quem não quer grita bem altôôô!!! “Nããããooo!!!”

Era demais pra mim. Bati no ombro do meu Amigo e disse-lhe no ouvido:

- Toca você… eu vou lá pra trás.

E fui indo, mas ele me segurou pelo ombro e me puxou num abraço:

- Obrigado, cara!

Fiquei lá atrás, perto da mesa de som. Perguntei ao técnico como fazia para desligar o microfone, ele explicou mas eu não ouvia nada. Gritei no ouvido dele:

- Vamos combinar um sinal para quando eu precisar que você desligue o microfone?

Ele fez que sim com a cabeça e fez um gesto passando a ponta dos dedos da mão pela frente do pescoço, como se estivesse cortando. Demos uma gargalhada e estávamos combinados.

O trio começou a andar. Estava bonito lá embaixo. Sem bandeiras, só as cartolinas feitas pelos alunos.macarronadaAchei que tudo ia transcorrer bem quando Patropi puxa o coro:

- Um dois três, quatro cinco mil! E viva o movimento operário-estudantil!!

Antes que ele emendasse uma segunda vez, fiz o sinal de “corta!” para o técnico de som que prontamente desligou o microfone. Todos olharam para trás e deram com meu olhar de ódio, braços cruzados e sinal de negativo com a cabeça. Pedi por mímica que religasse o microfone e que eles se contivessem.

Lá pelas tantas alguém me avisa que um deputado estadual que tinha sua base na cidade queria subir no trio. Pedi que providenciassem a subida. O sujeito, cujo nome eu esqueci – queiram me desculpar – foi ovacionado como um astro. Todos no trio o olhavam embevecidos, menos meu Amigo trotskista que me lançava um olhar suplicante, temeroso que estava que eu desligasse o microfone na fala do deputado. Ele realmente levou todos ao delírio e confesso que me emocionei ao vê-lo.

Ficou um pouco lá na frente, acompanhando os gritos de ordem, puxando outros, depois veio para o meu lado, já prestes a ir embora. Estávamos já no final, chegando na Praça XV (ainda não tinha o calçadão). Foi quando se aproximou do trio um grupo de rapazes com uma roupa que parecia um traje do Império. Viam-se com eles enormes bandeiras, três, cada uma trazendo uma palavra: Tradição, Família e Propriedade. O líder subiu ao trio e me perguntou se podia fazer uso da palavra. Antes que eu respondesse, vi Patropi vindo colérico lá da frente e confesso ter sentido medo – não de apanhar, mas dele ter um troço.

Ele brandia o indicador no meu rosto gritando:

- Não é pra ter bandeira! O combinado é não ter bandeira, caralho!

O deputado conseguiu acalmá-lo e ele voltou para frente. Eu disse para o líder dos fardados, gritando no seu ouvido:

- Olha só... a gente combinou que ninguém traria bandeira. Você pode pedir aos seus colegas para baixarem as bandeiras, por favor?

Ele arregalou os olhos e me disse em tom professoral:

- Não são bandeiras. São estandartes!

Eu continuei…

- Beleza, fera, dá pra pedir para baixarem os estandartes?

Ele assim o fez. Apontei meu amigo trotskista e disse ao fardado que se identificasse para ele. A gente não sabia direito o que era a TFP, mas os companheiros da UBES sabiam e ficaram furibundos e acho que só não chegaram às vias de fato com o fardado porque viram que o deputado morria de rir do meu lado –  ele ficou vermelho de tanto rir.

Bem, o moço da TFP se posicionou contra o projeto,  arrancando aplausos e gritos de “lindo!”. Nessa hora já estávamos em frente ao Pinguim. O deputado me deu um cartão e desceu do trio. Chamaram uma menina do cursinho que era vocalista de uma banda para puxar o hino nacional, que marcaria o fim do evento.

Dei-me por satisfeito e fiz um sinal para meu amigo que iria embora. Dei um pulo para fora do trio e fui andando para casa. Nunca mais veria aqueles companheiros da UBES. Meu Amigo passou em economia em São Paulo e nunca mais o encontrei, nem no Facebook, assim como nunca mais vi minha fita com o Supertramp em um dos lados. Fui embora leve, sabendo que tinha sido uma manhã inesquecível.

Ah, lembrei o nome do deputado… Ele se chamava Antonio Palocci.

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