O velhinho entrou gritando na sala, dizendo que lhe queimava o estômago. Estava sendo amparado pela esposa. Ela o sentou na cadeira defronte a minha mesa, e se sentou na cadeira do lado. E me lançou um olhar cortante, como que se num gesto eu conseguisse resolver aquela questão. Ele se chamava João Luís. Antevendo a tensão que dali sairia, fui avisando:
- Eu só preciso fazer umas perguntinhas, será rápido. Logo logo vamos fazer os remédios para o senhor.
- Eu entendi. O senhor não me leve a mal, Doutor. Mas não posso ficar com essa dor não. Sábado vai ter a festa junina. Aliás começou ontem. Hoje foi a procissão, tudo muito bonito né?
Faltou dizer que este plantão se deu numa quinta, feriado de Corpus Christi. Ele continuou, empolgado e gemendo de dor.
- É que eu vou dançar a quadrilha no sábado, depois de amanhã. É assim: tem a procissão de Corpus Christi na quinta e a festa da noite não tem quadrilha. Aí tem a festa na sexta que é pra as criança, de tarde. E no sábado tem a quadrilha principal. Vai a cidade inteira ver, Doutor!
- João, ele não quer saber dessas coisas não!
- Como é o nome da senhora? Selma? Claro que quero, Dona Selma! Fique tranquila!
- E eu vou ser o noivo da quadrilha, Doutor!
Seu João falou baixinho, como se contasse um segredo. Eu devia ter adivinhado a razão, mas perguntei antes:
- E a senhora vai ser a noiva, é isso, Dona Selma?
Por um segundo ela perdeu o ar de normalista do interior e assumiu a expressão que as mulheres rancorosas, inclusive as da capital têm. Compreendi a gafe, tentei emendar:
- Vixe, seu João! Parece que a dona Selma não vai dançar esse ano. A senhora me desculpe, eu... eu fiz tudo errado, né?
Dona Selma corou e sorriu, mas permaneceu calada. Seu João pousou a mão no joelho dela e falou:
- É porque assim, Doutor... Antes eu dançava a quadrilha com a Barbrinha. Ela é uma muié assim alta, porque o pai dela era gaúcho, o senhor sabe né?
Meneei a cabeça que sim.
- E eu sou assim baixinho que nem o senhor, eh! eh!, e então a gente ficava um casal muito engraçado.
- Nunca vi nada de graça nisso aí não.
Dona Selma, se esforçando para não rir. Eu tinha uma dúvida:
- Mas como se chama a moça mesmo?
Seu João emendou:
- Barbrinha!
- Bárbara - pontuou dona Selma sem cor na voz.
- Entendi. Nome de gaúcha né?
Eles me olharam com um ar estranho. Eu estava errando todas.
- Mas seu João, o senhor disse que dançava com ela. Não dança mais?
- É que ela ficou noiva dum cabôco brabo quarquer tanto, nem sei pra que aquela brabeza toda. Aí nóis paremo de dançar. Isso ainda na nossa mocidade!
- E o que houve esse ano para que ele deixasse que vocês fizessem par na quadrilha?
De novo, eu deveria ter pensado antes:
- Ele morreu, Doutor - Dona Selma cirúrgica.
- Foi sim, Doutor, morreu de pulmão duro. Diz que tossia que nem aqueles caminhão Fenemê quando queriam pegar no frio, o senhor lembra como faziam?
- Não eram muito do meu tempo não, seu João. Mas eu faço idéia! Bom, mas pelo que vejo, a dona Selma não fez oposição a esta dança!
Ela fez um sinal de negativo com a cabeça e se riu.
- A Sérma nunca gostou de dançar não senhor, né Sérma? Mas ela fica na barraca dos doce. Doutor, o senhor precisa ver a barraca dos doce daquela festa junina. O senhor assim é meio cheinho, o senhor ia ficar o tempo todo comendo as coisa lá, de tanto que é boa!
- João! Olha como fala com o Doutor!
- Mas eu não duvido nada, Dona Selma! Eu ia me acabar nos pés-de-moleque!
- O senhor tem que ver, tem que ver, Doutor. Eu posso te garantir que lá o senhor ia comer o melhor pé-de-moleque do mundo! Né não, Sérma?
E antes que ela pudesse responder, seu João arrematou…
- Mas o senhor ia tomar um susto com a canjica da Sérma, do tanto que é boa!
- É coisa fina, seu João?
- Quê isso, Doutor! A canjica da Sérma é formidávi!
- Jura, seu João?
- For-mi-dá-vi! - E marcava cada sílaba com um gesto de punho cerrado.
E eis que uma nova onda de dor o acometeu e ele se contorceu na cadeira até que encostou, derrotado, a testa no tampo da mesa. Me olhou com a dor de todo este mundo nos olhos, até que os fechou e abaixou a cabeça de novo para então jorrar vômito copiosamente, alagando o consultório. Deixou-se cair quase desfalecido no colo de Selma, ao que me despertei de minha catatonia.
Levantei-me em busca de uma cadeira de rodas, uma maca ou qualquer dessas coisas que não se acha quando precisa. Apontei para o chão fétido e depois para a primeira auxiliar de limpeza que vi e pedi “a senhora poderia ver isso, por favor?”. Nisso a enfermagem já havia trazido uma cadeira de rodas, onde acomodaram seu João.
Levaram-no para a sala de medicação, e fui no curto caminho recitando as medicações indicadas para mitigar aquele sofrimento. Pedi verbalmente os exames como um balconista de padaria pede um pão na chapa – assim sem olhar para quem se está pedindo. Estacionaram a cadeira com Seu João junto à parede e percebi que ele comprimia uma região do abdome que não era a que se conhece popularmente como a “boca do estômago”, mas que ficava mais ao lado, como que abaixo do bolso da camisa.
Perguntei:
- Tá doendo muito aí, seu João?
- Não senhor. Dói tudo. Aqui tá fazendo mais um peso, é esquisito. Esse peso tem já um tempo que tá aqui pesando.
- Um tempo quanto?
- Um tempo bom, Doutor, um tempo bem bom.
- Seu João...
Ia ser difícil para ele especificar qualquer intervalo de tempo naquela hora. Melhor tentar entender de outra forma. Aproximei-me dele, fiquei agachado junto ao flanco doloroso.
- Olha... pode tirar a sua mão. Eu vou colocar a minha. Eu só quero ver o que é, Seu João. Não vai doer.
Muito vagarosamente, com minha mão direita levantei a mão dele, enquanto pousava minha mão esquerda, ali na região onde “pesava” algo. Afundei a mão na barriga, como se faz numa almofada. Senti uma consistência diferente, não esperada para aquela região. E ali fiquei com minha mão, tentando entender pelo tato do que se tratava.
- Dói, Seu João?
- Não, Doutor, eu já disse que é um peso. É só um peso.
- Verdade. Isso. Um peso.
Eu já estava começando a me assustar com aquele peso. Olhei para a enfermeira que me observava naquele exame realizado de forma meio diferente, para se dizer o mínimo. Ela não criticava com o olhar, só estava tentando entender. Pedi com cuidado:
- Você o conduz para uma tomografia de abdome? Já podia fazer logo com contraste.
- Ih... o contraste deve ser complicado. Pela idade dele e por não termos a função renal ainda.
O de menos ali seria a função renal. Mas, paciência. Protocolo é protocolo…
- Tá bom. Vai sem contraste mesmo. Mas vai!
Ela assentiu com a cabeça enquanto os técnicos já ligavam o soro com os remédios. Observei que a Limpeza havia agido rápido com o consultório, que inclusive estava cheirando lavanda. Tão rápida e mais discreta foi Dona Selma, que saíra da sala sabe-se lá para onde. Pela idade, Seu João teria direito a um acompanhante, mas Dona Selma talvez precisasse de um tempo, ou ainda tivesse ido tomar um café.
Enquanto atendia a outros pacientes, vi Seu João sendo conduzido para a tomografia na maca. Terminei um dos atendimentos e corri até a radiologia, chegando a tempo de ver o final do exame. O técnico foi taxativo:
- Nem precisa do contraste para ver isso aqui, olha!
E correu com os cortes de imagem pela tela até parar no nível onde se via um bolo, um grumo, algo que na imagem parecia uma nuvem de chuva incrustrada no canto esquerdo do estômago. A nuvem era o peso. Mas não era uma nuvem.
- Um tumor né? O vôzinho não vai longe não, Doutor.
E por alguns instantes ele ficou me olhando a olhar para a tela, com a mão no rosto, como se tivesse tampando a minha boca.
Aquela imagem era uma sentença de morte. E nessas horas os pensamentos aparecem aos borbotões, com várias possibilidades – como se houvesse algo mais impactante que a morte iminente a ser levado em consideração. Mas sempre há. E naquele caso não seria diferente. Fechei os olhos mais para tentar esvaziar a cabeça, o que foi conseguido pela pergunta do técnico de enfermagem que empurrava a maca:
- Prepara a internação, Doutor?
Respondi num suspiro…
- Não.
Esperei que reposicionassem Seu João novamente. Dona Selma não aparecera ainda. Fiz um sinal de positivo para ele, e ele respondeu sorridente. Aproximei-me dele e me sentei do seu lado:
- Melhorou, Seu João?
- Melhorei bem. Posso ir embora?
Eu sorri para ele:
- O senhor tem um compromisso depois de amanhã né?
- E que foi marcado faz um ano, Doutor!
- Como é que é isso? Não entendi não!
Com muita força, ele sacou a carteira do bolso traseiro da calça:
- Deixa eu mostrar uma coisa para o senhor.
E procurou entre um emaranhado de papeizinhos que retirou da carteira. Foi uma procura lenta, minuciosa, em meio àquelas miudezas. E talvez fosse isso que restava para aquele octogenário: definir entre as miudezas o que era importante.
Chega num ponto em que tudo de grandioso na vida já ficou, e nos resta esmiuçar as pequenezas em busca de sentido para continuar a caminhada debaixo do sol. Assim começamos a vida, assim terminamos a vida…
Mas podia ser que eu estivesse errado nesta divagação, visto que o rosto de Seu João se iluminou ao desdobrar um pequeno quadrado colorido de papel cartolina.
Ele me entregou aquele trapinho azul claro, onde se lia apenas “Finalmente!” Olhei para ele depois de ler e ele fitava aquilo como se fita o fim do arco-íris. Esticou a mão como que me pedindo para que eu lhe devolvesse. Guardou de novo na carteira após dobrar com todo o cuidado. Retornou a carteira ao bolso da calça com a mesma dificuldade com que a retirara.
Por fim disse num tom sério:
- A Sérma não pode ver isso não.
Franzi a testa erguendo as sobrancelhas, perguntando:
- O que o senhor andou aprontando, Seu João?
Ele se riu com os olhos fechados, fazendo um “não” com a cabeça:
- Aprontei nada não. Mas mulher o senhor sabe como é…
E fez uma pausa, olhando para o infinito… E continuou:
- Na festa junina do ano passado, a Barbrinha tinha enviuvado fazia pouco tempo. Ia ficar chato se a gente dançasse. Mas eu não me fiz de arrogado. Mandei um correio elegante para ela escrito ‘Ano que vem nós casa!’. E ela me respondeu... com esse ‘Finalmente!’... que o senhor acabou de ler.”
E ficou me sorrindo emocionado. E assim ficamos nos olhando por alguns poucos segundos e me veio a certeza de fazer o que eu já havia decidido fazer desde o resultado da tomografia. Pedi ao Administrativo para localizar Dona Selma e quem mais tivesse de familiar de Seu João. Só veio ela, minutos depois, e junto com o marido bateram na porta aberta da saleta onde eu estava sozinho, digitando pedidos.
- Podemos entrar? - Ela perguntou solene.
- Sim, a casa é de vocês!
Sentaram-se e Dona Selma:
- O que deu nos exames, Doutor?
Eu precisava responder rapidamente, emendado na pergunta:
- A tomografia vai precisar do laudo, que só vai sair na segunda. A senhora sabe como é... feriado...
- Uai, mas ocês tão tudo trabalhando! Quede o médico que faz laudo?
- Por alguma razão não veio, mas não importa agora. Do que eu vi ali tem uma gastrite. Da braba, mas uma gastrite. Eu vou te dar um remedinho, Seu João, o senhor vai na festa junina, se casa, e segunda volta aqui para ver o laudo.
- Mas...
Começou a me dar medo aquele tom de voz dele...
- E a canjica da Sérma?
- Aquela que é...
- Formidávi!
- Isso! Claro que pode comer um pouquinho. Mas, tenha a bondade, Seu João... só um pouquinho!
- Tá bom, tá bom! Muito agradecido! O senhor não interessa ir na festa?
- Interesso sim! Mas sábado eu tenho que estar aqui para outro plantão, senão, o senhor sabe, eu iria. Até porque fiquei muito curioso com essa canjica da Dona Selma.
- Mas não pode trabalhar assim não, menino! Assim o senhor vai perder a beleza!
Dona Selma falou com ar professoral. Sim, a gente vai perdendo a beleza, e o mundo também, mas é só cansaço. Depois de dormirmos muito o mundo fica lindo.
- A senhora tem toda razão, Dona Selma! Olha, aqui está a receita. O senhor, Seu João, tome um comprimido desses todo dia cedo. Vai ficar bem bom e bonitão para a festa!
Levantamos, nos cumprimentamos e os levei até a porta do pronto-socorro, talvez para me acercar que fossem mesmo embora. Vi um casal de velhos indo com a velocidade lhes dada pelo tempo. Já no caminho para a rua, ele estendeu o braço para pegar a mão da esposa. Ela provavelmente fingiu que não viu, porque ele olhou no rosto dela, que naquela hora estava de perfil para ele, e ativamente tomou-lhe a mão entrelaçada à sua.
Em nenhum momento tive ganas de contar aos dois o diagnóstico. Que isso fosse feito segunda. Que fosse constatada a minha leniência ou imprudência ou imperícia e que eu fosse chamado a depor numa sindicância acerca de minha desastrada conduta de não internar aquele homem com um câncer agressivo lhe pesando na barriga.
Eu pediria para que constasse nos autos uma consulta ao Código de Ética Médica, ou ao Estatuto do hospital, ou a qualquer destes textos reguladores. Gostaria de ver onde estaria escrito que eu, na condição do que quer que fosse, e com o motivo que fosse, dispunha de condições morais para impedir que Seu João se sentisse no ocaso de sua vida o maior e mais feliz dos homens, ainda que por alguns minutos, ao “finalmente !” se “casar” com Barbara. E dali, com o espirito elevado, tivesse um banquete digno de um rei, sorvendo com muito gosto cada colherada da canjica de Dona Selma.
A qual, como já sabemos... é formidávi.
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