24 de dezembro de 2015

A bafista

Ela chegou trazida pela enfermeira do SAMU… vinha pálida, suando muito e as gotas de suor se espatifavam no chão à medida que progredia lentamente pela sala de emergência com seus passos arrastados. A palidez lhe emprestava uma cor - se é que aquilo poderia ser chamado de cor - chamuscada de branco que se espalhava na pele morena. Por um breve instante, todos pararam para vê-la passar, como num desfile. Ela parecia querer capitular diante de seu quadro, pois  mal podia consigo.

A enfermeira segurava o frasco de soro que se prendia por um ducto fino fincado numa veia do cotovelo, e com o outro braço a conduzia pelo ombro, muito mais com o intuito de não deixá-la cair do que de oferecer amparo. Ela segurava o coletor cheio de urina escura, o qual se ligava a uma espécie de mangueira que lhe atingia por entre as pernas, tudo isso coberto por uma bermuda curta de tecido mole.

Chegando próximo à cadeira que lhe serviria, a enfermeira fez menção de ajudá-la a se sentar, mas ela olhou de lado, fez com a mão um sinal de "basta" e o fez de forma firme e branda, que é como nos chegam as epifanias. A enfermeira se afastou e ela roteou 180 graus em seu próprio eixo, segurando agora sozinha o frasco de soro, o coletor de urina, o corpo coalhado em suor e na dignidade que teimava em querer lhe escapar. E com a altivez daqueles poucos que acham acertadamente que a vida lhes é credora e não o contrário, ela agora de costas para a cadeira, olhou para o infinito e foi se assentando lentamente, senhora de todos os movimentos.

Foi-lhe trazido um cabide para colocar o frasco de soro, ela agradeceu com um assentimento. Depois colocou o coletor de urina no chão. No fundo desconfiava que sua via crucis estava começando. Não, isso quem desconfiava era eu, que a observava de longe, mesmerizado. A certeza dela era a de que se tratava apenas de mais uma de muitas estações de sua via, e foi por isso que se ajeitou na cadeira até encontrar o conforto possível ao que depois recostou a parte de trás da cabeça na parede fria e fechou os olhos lentamente.

Perguntei com o olhar para a enfermeira que a trouxera e ela repondeu:

- Dezenove anos, diabetes juvenil, descompensada, dextro acima de 500

- E a família?

- Não tem. Mora numa invasão.

- Mora numa invasão sem a família?

- É. Acontece muito.

E a enfermeira, sem paciência para mais nada me estendeu a prancheta para que eu carimbasse. Tentei falar com ela a respeito da sonda vesical mas ela sumiu mais rápido que uma ambulância.

O técnico de enfermagem me contou o que eu já sabia:

- Dextro 'hi' doutor.

- E aquela sonda?

- Que sonda?

- Deixa pra lá.

Por um momento achei que só eu estava vendo a sonda que ligava a bexiga da paciente a uma bolsa plástica transparente que neste momento jazia no chão. Dirigi-me até ela, que abriu os olhos como se adivinhasse minha aproximação.

- Oi!

- Oi!

- A gente vai fazer insulina tá bom? Quanto você toma por dia?

- Era duas de 30, mas não tomo desde que cheguei aqui em São Paulo.

- Você chegou quando?

- Tem uns dez dias.

- Tá. E não trouxe a insulina?

- Não

E pareceu esboçar um sorriso pra mim…

- Pra invasão a gente só traz a roupa do corpo e mais algumas coisas. E eu vim meio que fugida.

- Entendi…

E me levantei, verifiquei seu pulso, pressão, coração e pulmões. Ela não estava com dor de barriga, disse apenas que parecia que ia "cair para dentro, o senhor sabe como?" Eu disse que sabia. É sempre melhor dizer que sabe como. Quer dizer, tem hora que não é...

Escrevi as medidas de insulina e hidratação, entreguei ao enfermeiro responsável, e falei baixinho de maneia que só eu e ele entendemos:

- Corre!

Fui atender a outros casos. Um tempo depois chega o enfermeiro:

- Doutor, o dextro da menina da invasão abaixou pouco.

- Como ela chama?"

“Como assim menina da invasão?", pensei.

- Não sei, o senhor que falou com ela.

É verdade, os médicos falamos coisas de vida ou morte para as pessoas sem nem sequer saber do nome delas, nem elas do nosso. Coisa de profissão antiga. Ele me trouxe a ficha: Iasmin.

- Nome chique, né?

- Você quer dizer que é chique para uma sem-teto, é isso?

- Imagina Doutor, não é isso não!

- É sim, eu também achei, até ela deve achar. Olha só, repete o esquema da insulina e soro.

- Não é muito pesado não? Ela pode fazer hipoglicemia.

- Se ela fizer a gente corrige. Vamo, vamo! - Exclamei apressando.

E ele saiu desaprovando com a cabeça.

Alguns pacientes depois, ele chegou no consultório triunfante:

- Doutor, ela tá fazendo hipoglicemia. Faço uma glicosinha?

- Não. Dá dieta. Depressa. Aquele sanduichezinho horrível e o suquinho quente e doce, bem horrível também. Mas vai dar conta. Eu já vou falar com ela.

Saí do consultório quando deu. Iasmin terminava o sanduíche com o suco. Tinham lhe dado uma banana. Sentei-me do seu lado:

- Mandaram até fruta pra você? Que chique!

Ela sorriu…

- Você está melhor?

- Tô sim.

- Tá caindo pra dentro?

- Não tanto, só um pouquinho.

- Que bom…

Depois de um breve silêncio, cortado pelo barulho das bolhas do fim do suco, continuei:

- Você veio de onde?

- Norte de Minas

- Como chama a cidade?

- Pai Pedro.

- Sei, perto de Montes Claros, né?

- Longe pra caralho.

Dei uma gargalhada e ela riu também. Emendei:

- Eu sou de Minas também.

- Mas não é do Norte.

- Não, sou do Triângulo.

- Diz que é região rica, né? O senhor teve sorte de nascer lá.

- Não sei se foi sorte... pra você ver, nós estamos aqui hoje juntos, olha só!

- Ah tá. O senhor é um sem-teto doente num hospital do SUS?

Eu devo ter feito uma cara que certamente inspirou pena em Iasmin. Ela riu, bateu na minha perna e aproveitou a deixa:

- O senhor quer banana?

- Não, obrigado, pode comer, é sua.

- Mas eu quero te dar, toma!

- Quer que eu coma? Por quê?

- Porque o senhor está com bafo de fome…

- E tem bafo de fome? - Falei soprando com as mãos em concha.

- Tem. E tem bafo de raiva, de cansaço, de gripe. Bafo de quem anda de moto.

Entendi…

Mordi a banana e falei de boca cheia:

- Então você entende de bafo, né?

Ela sorriu bonito. Continuei:

- Cocê é uma bafista, é isso?

- Pode ser.

- Então vem cá. Tem bafo de saudade?

E aí, depois de tanto tempo de pronto socorro público, eu finalmente consegui ver a miséria em um de seus estados brutos:

- Deve ter doutor, Mas eu nunca tive saudade de nada não…

Ficamos bem sérios. Na verdade eu fiquei. Ela parecia querer conversar mais. Perguntei finalmente apontando a cintura dela:

- Escuta, por que você usa essa sonda?

- Então, doutor, eu não sei.

- Não?

- Não. Cheguei de Minas toda ruim, bem ruim, me levaram não sei pra qual hospital, não foi pra esse aqui não. Me deram alta com isso aqui. Era pra tirar no posto e fazer exame. Mas no posto não podem me cadastrar porque eu moro em invasão.

- Entendi…

Fitei o chão por alguns instantes.

- Iasmin... - olhei pra ela - a gente vai ter que descobrir isso. Aí você vai ter que ficar aqui internada, tá bom?

- Tá bom.

- A gente vai fazer um monte de exame de sangue, raio x e exame de urina. Nós vamos tirar essa sonda também, tá certo?

- O senhor que sabe!

- Ótimo. Você tem alergia a alguma coisa?

- Não que eu saiba.

- Tá. Vou fazer os papéis e o pessoal vai trazer para você assinar. É provável que um leito para você só apareça amanhã de manhã, então essa noite você passa por aqui. Não tem outro jeito, me desculpe.

- O que é um leito?

- É uma cama, Iasmin. Agora a noite a gente não tem cama para você ficar.

- Ah... nem rede?

- Não - eu ri - nem rede… Infelizmente.

- Tá bom.

- Qualquer coisa você me chama. Você quer fazer alguma pergunta?

- Quero, Como é que é seu nome?

Disse meu nome e estendi a mão num comprimento, terminando a conversa como ela deveria ter se iniciado.

Procurei o enfermeiro e avisei:

- A gente vai internar a Iasmin, tá bom?

- A sem-teto?

- A gente já sabe o nome dela, cacête. Outra coisa, vai ter que tirar a sonda vesical tá? Ela não sabe a razão da sonda ter sido passada.

- E se for uma razão importante?

- A gente só vai saber tirando a sonda.

Olhei Iasmin quando entreguei no balcão os papéis da internação. Ela olhava para cima, alheia a tudo. Em que será que pensava? Ela não sabia o que era saudade, não sabia a razão de uma mangueira lhe adentrar feminilidade adentro, não sabia como arranjar insulina para se tratar, e devia saber que sua doença era grave.

No fim, ri de mim mesmo, e me recriminei da conclusão que tive: ela deveria apenas estar contemplando, maravilhada... o teto.

17 de dezembro de 2015

Curso para Mortadellers: Aula I: Perda de grau de investimento

Amigos, eu acredito na humanidade. Eu creio que seremos um mundo bão.

Por isso, e principalmente pelo fato de estar de atestado médico, acamado, sem poder sequer pegar no colo meu mais novo de um ano, começarei uma empreitada hercúlea: a de pelo menos sujar os cérebros dos menininhos e menininhas que foram tão lavadinhos na escola. Chama-los-emos de Mortadellers por razões relativas ao pagamento que recebem para apoiar um governo que rouba e afunda um país. Essa série não será para a dona do Magazine Luiza, nem para o Eike Batista. Eles apoiaram o governo e receberam bem mais que mortadela.

Tentaremos ser didáticos e breves dentro do possível. Caro Mortadeller, os textos aqui são incrivelmente mais fáceis que os de Marx, Foucault, Gramsci e Zizek (sim, eu sei que tem uns sinais gráficos por cima dos Z´s do sobrenome do cara. Mas ao contrário de você, eu sei mais sobre ele). Ok, você nunca leu nada destes caras aí. Tá bom. E se eu prometer que será mais fácil que os do Tico Santa Cruz ou do Durvivier? E mais curto que os do Sakamoto? E com menos referências que os do Stafale? Eu, ao contrário de você, Mortadeller, leio essa turma toda. Não me faz mal não. Eu leio até o Diário do Centro do Mundo. Palmeirenses suportamos fortes emoções.

Aceita o desafio? Vambora? Você já leu dois parágrafos de um reacionário. Morreu? Se o Mauro Iasi não souber, você vai continuar vivo, fera.

Então vamos lá: a aulinha de hoje é sobre "perda de grau de investimento"

Olha só, enquanto você e seus 04 amiguinhos estavam debaixo do Masp xingando gente como eu que estava trabalhando, as agências internacionais rebaixavam a nota do país para que invistam aqui. Já somos considerados como de "padrão especulativo".

Deixa que eu te diga uma coisa. Isto é beeeem chato. Mais chato que você não ter conseguido ingresso para o show do David Gilmour. Sabe por quê, criança? Porque assim fica mais difícil o governo pagar a dívida pública (faremos uma aulinha só de dívida pública, fique em paz).

E é chato por uma razão muito simples. O governo do Brasil tem pouco dinheiro no seu nome. Não se desespere, porque o governo da Itália e o da Inglaterra tem menos ainda. Por isso, para pagar a dívida imensa, ele tem que tirar de você, na forma de impostos. Esse é um jeito, mas é um jeito antipático. Existe um outro jeito que é a emissão do que se chama "Títulos da Dívida". São papéis vendidos a determinados sujeitos bem ricos, que também garantem a entrada de dinheiro no caixa do governo.

Vamos dar um exemplo: eu sou um país endividado até as cracas e emito um Título da Dívida que vale dez reais. Daqui a um tempo, conforme a minha atuação no governo, esse papel vai valer vinte reais e quem comprou por dez revende por vinte e todos ficam felizes. Para que este papel valha vintão, ou pelo menos mais que os dez iniciais, é preciso que uma coisinha aconteça: sendo ele um título da dívida, é importante que eu, como governo, consiga pagar, ou pelo menos mostrar que posso pagar minha dívida pública num espaço de tempo decente. Até aí beleza?

Bom, antes de continuarmos, deixa que eu te diga quem são estes "sujeitos" que compram esses papéis. Inicialmente, saiba que Títulos da Dívida não são comprados como mortadela. Não vende na padoca. Muito menos os "sujeitos" são pessoas ricas a dar com o pau que ficam se divertindo comprando e vendendo títulos, enquanto você se diverte ocupando reitorias. A maioria dos clientes são os FUNDOS DE PENSÃO. Tem um monte por aí.

Grosso modo, um Fundo de Pensão é uma entidade criada para fazer render o dinheiro que categorias de funcionários de determinado setor recolhe para suas aposentadorias. Pra você se situar, você deve ter ouvido falar na Previ. É um fundo de pensão que administra o dinheiro da aposentadoria dos funcionários do Banco do Brasil. E não pense que só compram e vendem títulos da dívida. A Previ foi uma das maiores investidoras e é, pode-se dizer, dona de grande parte da Vale - aquela que te disseram que foi privatizada.

Em resumo, um Fundo de Pensão cuida do dinheiro de muita gente, que vai precisar muito dele daqui a um tempo, e exatamente por isso tem que ter muita responsabilidade ao investi-lo. Estamos falando aqui de investimentos de uma quantidade absurda de dinheiro, cuja perda traria catástrofes inimagináveis.
Voltemos aos papéis da dívida. Eles vão dar mais retorno lá na frente, tão maior for a capacidade de o país conseguir pagar sua dívida num prazo razoável, certo?

Os Fundos de Pensão têm mais o que fazer do que ficar fuçando nas economias dos países para ver se eles podem ou não pagar as suas dívidas públicas. Para isso existem agências internacionais que, elas sim, analisam se as contas dos países estão pagáveis ou não. Quanto mais pagável, maior a nota do país, e ali o investidor sabe que a chance de ganhar é grande. Imagina a pressão do pessoal que opera o Fundo de Pensão dos Correios, o Postalis. Eles sabem (ou pelo menos deveriam saber) que não podem brincar com a aposentadoria dos nossos amigos carteiros. Então irão comprar títulos de países bem avaliados.

E como é divulgada essa avaliação? De um jeito parecido com o que sua mãe fazia, grudando estrelinhas na geladeira conforme seu comportamento. Mais estrelinha = mais mesada. Menos estrelinha = dormir depois do Jornal Nacional.

Pois é. Hoje o Brasil perdeu estrelinhas, isso porque já tinha poucas.

As agências internacionais fazem isso não por serem bobas, chatas e feias, muito menos porque o Eduardo Cunha mandou. Fazem isso porque o Brasil vai mostrando que cada vez mais pode pagar suas dívidas cada vez menos. Então, não vai entrar dinheiro no bolso do governo por essa via.

Só tem outro jeito do governo encher o bolso dele, que é esvasiando o nosso. Isso é feito aumentando impostos. É, a gente sabe que é chato. É chato também saber o quanto foi desviado para Suíça ou pra outro escambau qualquer. É chato também saber que tiraram da Petrobrás até praticamente falir aquilo tudo.

Para terminar, existe uma lei onde se lê que todo ano o orçamento do governo precisa fechar no azul, ou seja, o governo precisa arrecadar mais do que gasta. A lei é toda explicadinha, praticamente uma receita de bolo. Dá dicas tipo até quanto se deve gastar em folha de pagamento. É bem interessante e se chama "Lei de Responsabilidade Fiscal". Na Constituição, existe uma lei que manda abrir processo de impeachment para o governante que não cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A Constituição sabe da importância do cumprimento desta lei, porque assim as estrelinhas na geladeira ao lado do nome do Brasil se multiplicam, e o din-din vem mais de fora, e os impostos não precisam ser tão altos e a inflação fica sob controle, os juros baixos e todos ficam felizes - em tempo, teremos também aulinhas de "Inflação"e "Política de Juros".

Dilma Rousseff, sabendo que a boca ia esquentar feio, deu uma maquiada no orçamento apresentado ao Tribunal de Contas da União - as "Pedaladas Fiscais" (vai ter aulinha disso tambéééém!!!). Ela assim comete dois crimes: o primeiro de malversação do dinheiro público. O segundo de decoro, pois é feio tentar enganar o TCU. Notadamente por conta do primeiro crime, o processo de impeachment pode ser aberto se houver base legal, e há.

Notadamente por tudo isso, as agências internacionais colocaram nossa nota praticamente como valor especulativo - ou seja, comprar o título da dívida brasileira é como jogar na loteria. Quando o dinheiro não entra dessa forma de jeito nenhum, o governo vai fazê-lo entrar com juros altos, que geram dólar e inflação também altos. Aí a atividade econômica cai - as pessoas não compram e as empresas produzem menos e aumenta o desemprego. Isso se chama recessão.

Este é o segundo ano seguido de recessão. A última vez que tivemos tal situação foi em 1930-31, por conta da crise de 29 (pra essa não vai ter aulinha. Ou dê um google ou assista "A Rosa Púrpura do Cairo", do Woody Allen). Agora, por mais que a petezada tente culpar alguém que não eles mesmos, a culpa é deles.

A parte boa é que continuamos uma democracia. Você pode escolher seguir nosso cursinho ou pegar uma sombrinha esperta, movida a sanduíche de mortadela com tubaína no vão livre do Masp para defender que Dilma continue a fazer o que está fazendo com você.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...